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Imagens Dissidentes | Jurandy Valença (2012)
A aleatoriedade pressuposta no conjunto de cerca de 50 trabalhos apresentados por Maurizio Mancioli, a maioria fotografias, não só provoca, como também confronta o espectador com a escolha - proposital ou não - de vários elementos, lugares e assuntos fotografados que vão além de seus valores estéticos. No conjunto das obras apresentadas, há situações inusitadas nas quais a realidade é confrontada e deslocada para adquirir novas poéticas e simbolismos. São fotografias que, mesmo quando se utilizam do humor, não deixam de provocar uma certa inquietação.
Mais que um fotógrafo que produz fotografias, Mancioli é um artista visual que se utiliza do meio fotográfico para criar imagens. Para ele, a foto em si é um instrumento técnico e simbólico que se apropria do uso da metáfora, da colagem, do agrupamento e da repetição para resultar em imagens que assumem suas características próprias, mas que por outro lado também estabelecem ambigüidades e tensões. Em seu trabalho, não apenas no plano técnico da construção, mas também do ponto de vista simbólico, ele pensa a fotografia como um instrumento que está sempre em um processo que estabelece um tipo de um jogo de relações entre o bidimensional e o tridimensional.
Mancioli sempre insere em suas fotografias um caráter objetual, um dado icônico bruto, que elege a fotografia como meio não apenas documental, mas também como espaços, lugares e situações. Algumas de suas imagens parecem ter uma espécie de dupla vontade; de ser fotografia e de ser escultura. O uso da técnica é a ferramenta para a construção de uma nova sensibilidade e de parâmetros estéticos que se utiliza da reprodutibilidade técnica da fotografia como um instrumento que permite uma nova configuração e cria possibilidades de representação na qual a natureza da imagem fotográfica é ampliada. A foto aqui não é apenas uma imagem, mas também um objeto, uma realidade física que pode ser tridimensional, ter matéria, volume. É como se o artista criasse um espaço de libertação da materialidade da obra através da fotografia.
Não é o caso, aqui, de estabelecer relações de continuidade diante do conjunto de obras exibidas. Em seus registros fotográficos realizados em diversas viagens pelo mundo, o sujeito, o assunto registrado, nunca é destituído de sua banalidade comum, sejam animais, máquinas, reflexos, flores, paisagens, objetos ou pessoas. Não há ambigüidades. Uma vaca ou um circo, por exemplo, continuam sendo o que são. Mas Maurizio Mancioli restitui em suas obras uma (a)temporalidade que evoca uma transitoriedade na qual o passado e o presente se tornam o hic et nunc, o aqui e agora.
Ao escolher a palavra dissidente como título de sua mostra individual, que reúne sua produção nesses últimos dez anos, Mancioli não está falando da dissidência política, do ato de discordar de um poder instituído (ou constituído), seja por intermédio de uma decisão coletiva ou individual. Aqui, a dissidência reúne diversos elementos tanto subjetivos quanto objetivos, mas todos relacionados à contemporaneidade. Seus questionamentos estéticos não têm conotações de ordem social ou política. Eles partem do registro do cotidiano. Sua ‘dissidência’ está relacio- nada ao fato da sua própria natureza errante, de ser um estrangeiro sempre em deslocamento. Maurizio Mancioli usa a memória para ver, enquadrar com perfeição e capturar com suas imagens a passagem, o tempo; a sua própria desterritorialização. Em suas imagens reverbera a frase de Montaigne; “Eu não observo a paisagem, eu observo a passagem”.
Jurandy Valença é artista visual, poeta, jornalista e curador. Atual diretor da Biblioteca Mario de Andrade, São Paulo, SP.
O Tempo Inteiro | Branca de Oliveira (2004)
Imagens, semelhanças, analogias. Traços, marcas, manchas. Riscos, gravações, escavações. Índices, rastros, vestígios. O que vejo? Olho, mas não vejo. O gesto. O olhar deseja sempre mais do que lhe é exposto. O que eu vejo no trabalho de Maurizio Mancioli são excitações para o invisível – o gesto como a expressão do “acontecimento”. Uma relação singular de tempo, corpo e espaço, está expressa, gravada, e impressa em sua obra.
“O gesto errante” - A natureza de suas produções assim como a sua própria, têm como característica marcante a errância, o viajante, o transicional. Maurizio nasceu no ano de 1970, em Lausanne, de família tradicional italiana, passou toda a infância viajando pelo mundo em companhia de seus pais. Estudou economia e administração de empresas na Suiça. Veio para o Brasil em 1994, onde fundou a BSP-Business School São Paulo e também completou sua pós-graduação. Abandonou o “dia a dia” dos negócios para se dedicar, em tempo integral, à produção artística, que manteve sempre como atividade paralela.
O conjunto de seu trabalho revela os desdobramentos, em suas operações poéticas, do plano geográfico vivido – passa por múltiplos espaços e figurações, criando e ao mesmo tempo tornando-se percurso, numa relação de tempo que dura somente enquanto durar a personagem inventada. A subjetividade criada vive no plano da linguagem, ou melhor, nas fendas da linguagem e só pertence a esse plano. São subjetividades que vivem nas fotografias, nos vídeos, são de papel ou de tinta, nos desenhos e pinturas. Há também os projetos de instalações e performances, além de objetos tridimensionais.
É o olho de Maurizio que pensa. Tem um olho dentro do olho, que se olha em abismo multiplicando-se em planos. Olho máquina que adere à paisagem – olho corpo com sua paisagem.
As fotografias e imagens videográficas têm uma qualidade comum: as linhas tremidas com espessuras variadas, empastamentos e borrões, irredutíveis a imediatez da visão. Trata-se da irrupção daquilo que o instantâneo esconde, da fixação na imagem de um movimento que supõe uma espécie de estrondo interno fabricado pelo encontro, pela fricção entre o corpo olho e a realidade que aparece.
As imagens desvelam a paixão pelo gesto / movimento, pela mensagem das qualidades / intensidades puras, fixam a presença / ausência, fazendo-a durar, dão consistência ao fluxo do tempo - na imagem desmaterializada pulsa a diversidade temporal.
Já nos desenhos e pinturas de Maurizio o que ocorre é o oposto disso. É por força mesmo do material que se pode experimentar o imaterial. Os depósitos de tinta, as manchas e faixas, as diversas camadas de cor são relações de paisagens cromáticas.
A estrutura aqui, é apenas dada pela extensão e qualidade das camadas de cor. As matérias, os gestos pintados não são coisas representadas, nem mesmo meios de representação. São elementos de uma composição que visualmente transforma-se em espaço empírico. O espaço é a própria superfície pintada, é o ar que é colorido ou negro.
Um “ar” que se pode cortar, tocar, arrancar, massagear; de um vazio pesado ou leve, matérico que vaza por todo lado, assim como a luz; de um intervalo que a tudo preenche e principalmente a si próprio, o campo recortado do quadro.
Torna visível para nós o que apenas podemos sentir, o “entre”- a matéria permanece aquilo que é, mas torna-se espaço à nossa vista, e portanto, antítese da matéria sem deixar de sê-lo.
Operando com uma lógica de sentidos incompossíveis, que só se pode processar por meio de procedimentos artísticos, realiza “a passagem”, no seu instante próprio, fugaz, inapreensível, o intervalo – tempo originado entre a metamorfose de um estado matérico para outro. A pintura de Maurizio é concretamente o espaço, ao mesmo tempo em que nos revela, do espaço concreto, a sua impossibilidade real, de existência. O espaço é uma abstração, uma idéia, um conceito. Por vezes uma imaginação, uma ilusão. O espaço configurado nas pinturas nos faz experimentar a sua natureza singular, uma construção do pensamento para o pensamento.
Esse jogo de idéias e coisas, material e imaterial está impresso no plano do quadro totalmente exposto à luz, cuja superfície coincide com a realidade matérica , presente, do acontecimento das camadas pintadas. As pinceladas sobrepostas que foram executadas no tempo, estão ali em estado de eterno presente, mesmo senão durarem infinitamente. Portanto, não há passado, não há futuro também, só atualidade, contemporaneidade. Se não há tempo, no sentido cronológico, só duração, e todas as camadas matéricas estão num presente contínuo, não existe também profundidade. As pinturas são tão somente conglomerados de superfícies inalienavelmente amalgamadas em seu plano de composição.
Quanto mais a matéria é colocada à prova, nos trabalhos de Maurizio, mais se experimenta uma trama espacial. Nessas obras sente-se uma espécie de “morte” da técnica, pois nã há erro, estrago, fracasso, apenas transformações materiais. Os traços ali gravados são impressos como testemunho de acontecimentos concretamente experimentados, mesmo não sendo reais – fragmentações e totalizações, dilaceramentos e recomposições, metamorfoses de todo tipo, que não são outra coisa que pura poesia, afirmação incondicional da vida.
Branca de Oliveira, Professora-Doutora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP. Agradecimentos a Ana Lucia Guimarães, Anna Dorsa e Maria Luisa Beer pela interlocução e acuidade crítica.